Ela brincou comigo antes de partir
Era um dia de sexta-feira à noite e estávamos na porta de casa. Eu sentada na escada, outras pessoas que não recordo exatamente quem, estavam no passeio e ela ali, no alto, debruçada no muro como quem estivesse prestando atenção à conversa do grupo. Em um determinado momento ela saiu e foi pegar água para beber, voltou com um copo com água e ficou novamente debruçada no muro. Eu logo abaixo, sentada na escada, olhei para cima e disse: “eu estou aqui viu, vê se não me molha”.
Muito bem, ela que já havia bebido a água, fez um gesto como quem ia me molhar, e acabou me molhando, (ela não percebera que tinha um restinho de água no copo). Eu prontamente olhei para cima. Ela, coitada, fez uma cara de assustada e falou baixinho: “Desculpa, foi sem querer”, disse ela... e deu risada. Eu passei a mão na cabeça enxugando o cabelo e resmungando.
Anoiteceu e fomos dormir, foi o último dia que dormir ao seu lado. Eu sempre colocava a minha mão direita debaixo do travesseiro dela, um hábito que tenho até hoje: dormir na posição fetal e colocar a mão debaixo de um travesseiro.
No sábado, por volta de 8h, acordei com meu irmão me chamando: “Veca,Veca, mainha está dormindo no sofá é não quer acordar”, disse ele.
Ela costumava acordar cedo para despachar os filhos para o trabalho ou para a escola. Ela parecia não admitir a possibilidade de um filho sair cedo de casa sem que ela acompanhasse a saída. Ela acordava e esperava a saída dos filhos, depois então ela ia para o sofá tirar seu cochilo.
No sábado dia 30 de janeiro de 93, ela acordou cedo, foi à padaria, voltou, fez café e esperou minha irmã Rita sair para trabalhar. Minha irmã trabalhava em um hospital e saia cedo, até nos fins de semana. Por mais que ela dissesse a mainha que ela não precisa acordar, ela teimava e acordava.
Então, meu irmão me chamou e eu fui ver o que havia acontecido. Vi minha mãe deitada serenamente no sofá com a cabeça bem encostada como quem tirava um bom cochilo de sempre. Eu sentei ao seu lado e peguei em sua mão. Balançando seu braço, eu dizia: mainha, mainha... ela nada respondia. Quando passei a mão em sua perna, percebi que seu vestido estava molhado, cheirei a minha mão e senti cheiro de xixi.
Logo depois meus outros irmãos foram acordando... só lembro depois da cena de minha mãe sendo carregada por dois rapazes. Um segurava pelas pernas, e o outro; pelo tronco. Ela foi levada para um hospital, mas eu soube que ela já havia saído de casa, sem vida. Foi um enfarto fulminante.
Ela foi sepultada no mesmo dia de sua morte. Muita gente não ficou sabendo, pois foi tudo muito rápido. Eu não fui ao enterro e também não me lembro onde fiquei.
Eu estava saindo da adolescência, passei minha vida quase grudada nos meus pais, principalmente em minha mãe. Ela me levava para tratamento médico alergologista e fazia de tudo para me manter longe das alergias e dores de ouvido.
Depois de um tempo sem querer entrar no nosso quarto, um dia eu resolvi enfrentar o medo e entrei. Sentei na ponta da cama, em frente a minha cômoda e fiquei arrumando minhas roupas. Dobrava cada peça de roupa como quem tivesse arrumando a vida. No meio das minhas roupas estava uma blusa dela.
Minha mãe morreu serenamente como quem dormia.
Parece que exatamente como ela queria: sem dar trabalho a ninguém, dizia ela.
E ela brincou comigo antes de partir.
Salvador, 23 de setembro de 2018.
Verônica Almeida
Enviado por Verônica Almeida em 23/09/2018
Alterado em 01/12/2018